quarta-feira, 19 de março de 2008

CLERICALIZAÇÃO DA IGREJA



Manoel Soares Cutrim Filho *

A mola mestra que nos propulsionou na elaboração dessa matéria é a expansão do Reino do Nosso Senhor Jesus Cristo, por meio do crescimento sadio da sua Igreja.

Na visão neotestamentária, todos os nascidos de novo são sacerdotes: “... sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus...” (1 Pe 2:9). Há uma religação pessoal do homem com Deus por intermédio de Jesus, sem intermediário humano. Esta foi a ênfase dos apóstolos, de todos os reformadores e daqueles que têm se insurgido contra o clero dominante e opressor, ao longo da História da Igreja. Líderes sim, mas não intermediários entre Deus e seu povo. Os apóstolos estimulam a Igreja a obedecer e a honrar aos seus guias (Hb 13.17).

Não existe espaço no sacerdócio universal de todos os crentes para a criação de classes especiais de líderes. Na igreja dos dois primeiros séculos o líder era alguém da congregação e assim continuava sendo. Ele não precisava afastar-se do povo para preservar a sua autoridade. A sua autoridade era medida pela sua capacidade de servir, de dar-se ao povo e pelo povo. Hoje em algumas igrejas e denominações há verdadeiras castas onde existem líderes de primeira grandeza, de segunda, terceira, etc., juntamente com cada uma dessas grandezas estão seus familiares e protegidos, esses grupos são, em alguns casos, verdadeiros semideuses, com direito a segurança pessoal, sala “vip” nos restaurantes ou refeitórios onde participam de eventos. Há diferença desses procedimentos para o sacerdócio levítico que o Senhor extinguiu?

A clericalização tem sido um fenômeno cíclico na História da Igreja. Dentro da realidade social do Brasil, lembro de um fenômeno, que a meu ver, é pertinente mencioná-lo, por trazer possível semelhança com a matéria que ora tratamos — foi a preferência que era dada aos bacharéis no tempo do Império e parte da República, quando alguém ia estudar na Europa, inexoravelmente voltava bacharel, em Direito ou Letras, não em uma profissão tecnológica, mas tornava-se um especialista em burocracia. Um simples técnico para a manutenção dos engenhos ou engenheiros, para a construção de estradas, eram importados. Enquanto isso países europeus e os Estados Unidos estavam bastante envolvidos com os inventos que propulsionaram o progresso dos mesmos. Quando acordamos do sonho da ‘República dos Bacharéis’, e descobrimos que precisaríamos ter profissões multidisciplinares, o atraso era grande. Se a igreja acordar a tempo pode ser conhecida pela igreja da multiplicidade dos dons e não pela igreja essencialmente episcopal.

O clericalismo da igreja está ligado muito com a perda da visão de servir daqueles que atuam no serviço religioso, ao contrário do que disse Jesus: “... que não veio para ser servido, mas para servir...” (Mt:20:28). Isto aconteceu com os levitas do Velho Testamento, fariseus do tempo de Cristo, o clero após a oficialização do cristianismo por Constantino e até aos nossos dias. “Vantagens espirituais não devem ser usadas para interesses pessoais, exaltação própria e esquecimento de glorificação do Deus Todo-Poderoso”, disse Waldiberto Moreira, quando pastor da Igreja de Cristo em Taguatinga Sul – DF, na colação de grau dos formandos da turma de dezembro de 1998, da Faculdade Teológica Cristã do Brasil .

Alguns fatores contribuem para o surgimento desse fenômeno, ora apreciado, dentre outros podemos citar a necessidade que o homem tem de dominar, controlar, ser o centro das atenções, ser reconhecido, daí acercar-se de mecanismos para a consecução de seus objetivos, outro fator que tem contribuído para permanência do fenômeno em consideração é a fraqueza psicológica da maioria das pessoas, que estão sempre reivindicando: “queremos um rei, queremos um super-homem que resolva os nossos problemas e nos defenda”. A atitude do povo que professa a Deus, nos dias de hoje, não é diferente da atitude tomada pelos hebreus no tempo dos juízes: “... constitui-nos, pois, agora, um rei sobre nós...” (1 Sm 8:5). Este é o grande engodo que contribuirá para o surgimento do anticristo. Segundo alguns escatologistas, a humanidade possui grande expectativa de ter à sua frente um super-homem (messias), para solucionar os seus problemas.

O título na comunidade dos santos não deveria ser visto como status, mas serviço, isto é servir. Chamamos com todo informalismo: Jesus, Pedro, João, Paulo, Tiago (apóstolos), mas os nossos clérigos quando não os tratamos de Reverendo, chamamos de Pastor, Bispo, Apóstolo, Pai Apóstolo, quem sabe, em breve, Arcebispo ou mesmo de Papa. Em alguns casos até parece um sacrilégio chamar um pastor de irmão, sem primeiro trata-lo pelo seu título. Que evangelho é esse? Se o próprio Iniciador desse evangelho disse: “Vós, porém, não sereis chamados mestres, porque um é vosso Mestre, e vós todos sois irmãos” (Mt 23:8). Não venham os intérpretesoficiais” do evangelho dizer que Jesus não quis dizer bem isso!  O respeito, o apreço a consideração são necessários, mas não, a criação de outra casta de cristãos. O formalismo afasta as pessoas. Certa vez um pastor amigo disse-me que ao chamar um colega pelo nome, aquele retrucou: Por favor, fulano, me chama de pastor, pois senão o povo não me respeita. Pena que atitudes como essas permeiam o Evangelho do Nosso Senhor Jesus Cristo!

A discriminação é tão grande entre pastores e leigos, a qual é também praticada pelo próprio povo, e raramente vemos um líder de formação eclesiástica posicionar-se a respeito, possivelmente para não causar suscetibilidades junto aos seus colegas ou por conveniências pessoais. Em alguns casos essa discriminação chega a ser piadesca, como a anedota contada no meio de líderes evangélicos: “Certa vez uma igreja mandou um representante para realizar um trabalho em determinada cidade do interior, foi recebido pelo líder da igreja local, passaram a conversar e num dado momento o líder local chamou o irmão enviado, de pastor, este disse que não era pastor, mas evangelista; imediatamente o irmão hospedeiro gritou para a esposa e disse: mulher, solta o frango e cozinha a abóbora, porque o irmão é evangelista!

“Na Bíblia, os leigos são todo o povo de Deustanto o clero como o ‘laicato’ (leigo significa literalmente do povo, e vem do termo laos, povo). É um termo honroso, que todo o povo de Deus em Cristo é escolhido para sersacerdócio real, nação santa, povo [laos] de propriedade exclusiva de Deus’” (1 Pe 2.9). [1]

Numa visão neotestamentária não existe distinção entre clero e leigo. Para o objeto da nossa reflexão: o presbítero, evangelista, diácono ou mesmo, o irmão que não é um oficial de uma igreja, mas é conhecedor da Palavra do Senhor, comprometido com a obra, de bom caráter e que goza de reputação junto à igreja local, tem sido objeto de muito desprestígio. Qual tem sido a razão para isso? Se essas pessoas não estão bem preparadas bíblica e teologicamente, que as igrejas e denominações invistam na formação dos seus obreiros!

Uma igreja de porte médio, em qualquer cidade média do país pode ter uma classe de Escola Dominical para formação de obreiros. Nela sendo ministrado ao longo de um ou dois anos matérias tais como: Doutrinas Básicas do Cristianismo, História da Igreja, Geografia Bíblica, Administração Eclesiástica, noções de Hermenêutica, noções de Homilética, Aconselhamento, Ética Cristã, etc. Ao término desse curso, uma pessoa não neófita estará apta para assumir uma congregação, Escola Dominical ou qualquer departamento de uma igreja, e até um pastorado. Descentralizando as atividades da mesma e desafogando o pastor para o que é mais próprio de seu ministério à luz da doutrina apostólica: ensino da Palavra e a oração (At. 6:2 e 4). Uma igreja local que transfere o ensino dos seus líderes para um seminário ou faculdade teológica, está fadada a morrer por engessamento clerical, é uma morte lenta, mas certa, assim indicam os vinte séculos de História da Igreja Organizada. Nada contra que alguém busque aprimorar os seus conhecimentos teológicos em um curso dessa natureza, mas devem esses conhecimentos se adequarem à realidade da igreja e não a igreja se adequar à realidade desses conhecimentos obtidos nos cursos teológicos, ou seja, academizar-se.

Os prejuízos que essa visão tem trazido à igreja têm sido grande, a ponto de que uma visita, ou uma oração efetuada por uma pessoa que não seja o pastor, não tem um mesmo valor. Há expressões: ele não é um pastor, mas é uma bênção; pastores e obreiros, etc. Será que um pastor também não é obreiro?

Segundo alguns comentaristas, uma das características dos nicolaítas foi a introdução da ênfase ao clericalismo da igreja.

Por que muitos querem ser pastores sem ter o ônus de pastorear? Porque como tal, são mais reconhecidos ou assim encontram reconhecimento.  A igreja é cúmplice nisso e em especial boa parte de seus líderes, por sua atitude silente, que em muitos casos é cômodo.

Por que são ordenados pastores que não estão à frente de um rebanho e nem querem estar? Não banalizemos o dom pastoral! “Se alguém aspira ao episcopado, excelente obra almeja” (1 Tm. 3.1).  Alguns podem até dizer que eles não vão dirigir uma igreja, mas poderão ser usados para professores de Escola Dominical, liderar os adolescentes, jovens, casais, etc. Para tais atividades deva o obreiro ser necessariamente pastor? Grandes igrejas existiram e existem sem essa sistemática e funcionam muito bem com líderes nessas áreas sem nunca terem frequentado um seminário ou faculdade teológica. Procedimentos dessa natureza que aproveitem melhor as pessoas da congregação como seus líderes, estão mais próximos dos ensinos apostólicos. Igrejas que possuem muitos de seus líderes com o título de pastor sem estar efetivamente exercendo, não poucas vezes surgem disputas e vários constrangimentos, no seio da igreja local, que repercute na vida espiritual do Corpo.

Os líderes devem lembrar do sacerdócio universal, exercido por todos os santos. Nãomonopólio no exercício sacerdotal da obra do Senhor. Uma igreja local deve exercer o seu ministério pleno, por meio de todos os dons espirituais e ministeriais. Na visão neotestamentária, cada membro tem o seu ministério definido. O ministério não é do pastor, ele tem seu ministério, como membro da igreja local, aliás, uma das principais tarefas de um pastor é contribuir para que cada crente descubra e exerça o seu ministério com desenvoltura [2]. É bem verdade que a liderança espiritual de uma igreja local sempre que possível, deve ser exercida por um irmão ou irmã que tenha dom ministerial de pastor.

Hoje as igrejas urbanas do nosso país, como nunca, pela graça de Deus, têm homens e mulheres que exercem profissões na vida civil e militar, com farta instrução secular, bem comprometidos com o Reino, preparados na Palavra do Senhor, mas quantos desses exercem o ministério da Palavra, tendo oportunidades para serem preletores em congressos, convenções e encontros das igrejas e denominações?

Tudo isso pode levar ao surgimento de uma igreja meramente eclesiástica (monopolizada pelo clero) e formal. A história tem exemplos, nesse sentido. Uma das implicações de sacerdotes e fariseus com Jesus era porque ele não estudou em suas escolas. A própria Reforma Protestante aponta nesse sentido. João Wichiffe, João Huss, Lutero, Zuínglio, Calvino, e outros reformadores estavam cansados desse monopólio, estimulando que pessoas do povo pudessem pregar e liderar os trabalhos.

O clericalismo da igreja é algo tão sério que sempre tem desembocado num preciosismo acadêmico, que precede uma ação inquisitiva e de exclusivismo do clero na interpretação das Sagradas Letras. Isso foi assim com os escribas e fariseus no tempo de Jesus; com o clero romano que além de proibir que a Bíblia fosse lida ou traduzida para uma língua popular, a saber, não canônica, proibiram qualquer manifestação, estudo, análise ou debate que não fosse sob a coordenação da igreja oficial. Mas Deus levantou homens como Jonh Wycliffe, na Inglaterra, que traduziu o Novo Testamento para o inglês e Lutero, na Alemanha, que traduziu a Bíblia para o alemão. Por taispecadosesses nossos irmãos não foram mortos por providências divina, permitindo que o momento pelo qual eles assim agiram lhes fossem favoráveis.

Alguns dizem que a Igreja Evangélica Brasileira saiu de Roma, mas Roma não saiu da Igreja. O querem dizer com isso? É que a ênfase da autoridade está no clero. Da mesma forma que os fiéis da Igreja Católica respeitam mais o bispo que o padre, porque este tem mais autoridade. Na Igreja Evangélica não é diferente, os pastores são mais respeitados que os simples irmãos que não têm nenhum cargo clerical, mas se na denominação tiver bispos ou apóstolos, estes têm um reconhecimento mais elevado que os pastores. Onde puseram o sacerdócio universal de todos os crentes?

Outro ponto perigoso sobre o assunto é de uma igreja essencialmente eclesiástica ser levada a um profissionalismo tal que os membros deixam de envolver-se com a obra, tudo fica centralizado no clero, afinalprofissionais pagos para trazerem os sermões e cuidarem de todos os ofícios religiosos, visitações, discipulados e por que não a evangelização também? Os denominados países pós-cristãos representam exemplos de igrejas que começaram assim.

O processo de clericalização da igreja existe desde tempos mais remotos como mencionamos anteriormente. Pouco depois da morte de nosso Senhor tivemos a morte de Estêvão, o primeiro mártir do cristianismo,­­ cujo apedrejamento foi promovido pelo clero da época, o mesmo ocorreu com vários cristãos anônimos, mas o processo chegou ao apogeu com a romanização da igreja, instituindo a “santa inquisiçãoem diversas fases, onde vários mártires tombaram por essa causa, ou foram duramente perseguidos, como Pedro Valdo (Século 13). Seu maiorpecadodentro da visão romana foi buscar a restauração da comunidade cristã de servos uns dos outros [3]; vários reformadores também bateram nessa tecla; João Hus, Savanarola e outros mais, que foram martirizados ou perseguidos.
Quando o nosso conceito de ministério é conforme o que temos no Novo Testamento, nós paramos de fazer essa dicotomia clero/leigos. Todos passam a ser ministros (servos-doulos), e , temos uma igreja de verdadeiros sacerdotes. A participação dos membros da igreja não é mais assistir a uma série de ‘cultossemanais, passivamente, nos bancos, mas é a realização dos serviços de evangelismo, de edificação, de comunhão, de ministração, de intercessão, discipulado e muitas outras tarefas, nas casasdurante a semana”. [4]
Em toda a História da Igreja do Senhor Jesus na terra, o leigo (se assim podemos chamar), não o ignorante, mas aquele que não passou por um seminário, ou uma ordenação formal, teve e tem um papel fundamental no cumprimento da Grande Comissão do Senhor Jesus, com vistas à expansão do seu Reino aqui na terra. Poucas denominações têm encontros nacionais ou regionais de obreiros não clérigos, e quando isso acontece regularmente, traz grande crescimento para a igreja e motivação para esses trabalhadores da seara.

Qual a igreja que desejamos até que Jesus volte? Uma igreja clerical, constituída dos bemesclarecidos”, dos profissionais do clero, engessada, formal e distante do povo? Ou uma igreja formada e liderada por pessoas vocacionadas pelo Senhor para viverem e propagarem o Seu Evangelho de forma pessoal e com autoridade?

* Manoel Soares Cutrim Filho, cristão, conservador e patriota.              E-mail: cutrim@terra.com.br

[1] Stevens, Paul, A Hora e a Vez dos Leigos, pag. 24, ABU Editora, 1ª Edição – 1998.
[2] Ibidem, p. 138. 
[3] Fife, Thomas W, A Igreja do Novo Testamento, p. 11, apostila, de 1991. 
[4] Costa, Iran Bernardes, Valores Ético-Sacramentais Para um Ministério Saudável, p. 73.

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...